São muitas as tentativas de explicação pela mídia especializada em comentários sobre a cultura pop para o gigantesco sucesso do seriado de televisão norte-americana “Lost” (refiro-me às mais variadas mídias culturais, que temos como exemplo aqui no Brasil a Folha Ilustrada, o Caderno Dois, a Superinteressante, e por aí vai). Dirigida por mais de sete diretores, escrita por mais de quinze roteiristas, tornou-se um daqueles “fenômenos” confortavelmente aceitos e admirados pelos detentores das opiniões que regem os sucessos das mais variadas programações: A inominável massa desconforme que constitui os expectadores. É o jugo luxurioso desta massa que rege o que é concretamente aceitável para ser passado em determinados horários televisivos.
O ganho das emissoras com o sucesso de seus programas está, obviamente, nas astronômicas quantias pagas por patrocinadores para terem suas marcas aparecendo nos (muito ilustrativos só pelo nome dado) horários comerciais. Ora, se é justamente com a atenção dos telespectadores que é proporcionado o lucro deste campo corporativo, é evidente que os programas mais assistidos não serão apenas encorajados, mas lidados como se fossem de extrema relevância. Fica claro que a razão de veiculação de atrações não é propriamente a qualidade do programa. Em verdade, a qualidade e peso do conteúdo do que é passado é o que menos importa nesta perspectiva.
A ótica crua destas relações é responsável pelas famosas atrações de programas de domingo, o que já é referência pejorativa para a crítica televisiva. Tendo como senso comum a baixa qualidade destes programas, torna-se fácil explicar e ilustrar o que foi apontado anteriormente: São programas de conteúdo escancaradamente de fácil compreensão, que não exigem qualquer tipo de reflexão, ou necessidade de interação com a realidade vivida no cotidiano, e quando o contrário, alimenta-se a construção do dia-a-dia ao invés de estranhá-la ou colocá-la em qualquer plano de simbolização mais profunda.
O que torna estes programas tão facilmente consumíveis são justamente os momentos previsíveis que ocorrem a todo o momento (as celebridades emocionando-se devido às mini-biografias apresentadas, o cidadão comum ganhando ou perdendo uma quantia escandalosa de dinheiro por ter respondido uma pergunta aparentemente aleatória, ou os rapazes e garotas de reality shows fomentando suas intrigas internas). O que prende o telespectador não é propriamente a resolução destas questões, pois os conteúdos dos programas variam, mas a formulação de tensões é sempre a forma recorrente de chamar a atenção. O expectador nada sabe da celebridade apresentada, mas quer saber de que maneira ela se assemelha com um ser humano do cotidiano, não sabe a resposta da pergunta feita pelo apresentador, mas quer saber qual a resposta que dará o passaporte para uma vida idealizada para um cidadão comum, desconhece qualquer uma das pessoas do reality show, mas as resoluções das tensões entre eles, por mais irrelevantes que sejam, é o que saciará sua vontade de assistir ao programa. Esta vontade totalmente isolada de qualquer caráter reflexivo é o que diverte o expectador. Por isto estas e outras atrações (não necessariamente televisivas) são chamadas de “entretenimento”.
Estas tensões são o que torna concreto o produto demandado pelos consumidores (expectadores). Quanto mais entretidas estiverem as massas que ficam à frente das telinhas, mais enfáticas serão as aprovações destes programas para passarem nas emissoras.
Antes de analisar qualquer coisa sobre “Lost”, é preciso lembrar que os episódios são escritos ao longo da produção do seriado, logo não há uma totalidade por trás do que é mostrado. Para escrever qualquer linha de uma próxima temporada, os produtores precisam saber se há a especulação de uma audiência alta o suficiente para este ser um investimento lucrativo.
Voltemo-nos agora para os inúmeros mistérios apresentados nas duas primeiras temporadas do seriado:
Temos um aleijado cujo nome é o mesmo de um pensador empirista britânico da época pré-moderna e que misteriosamente começa a andar, números que aparentemente trazem azar e possivelmente representam o apocalipse criptografado, uma corporação misteriosa que aparentemente administrou pesquisas na ilha, uma cientista cujo nome é o mesmo de um teórico político que influenciou a Revolução Francesa e os primórdios do pensamento socialista e que aparentemente enlouqueceu por solidão na ilha, a aparição de personagens que não estavam na lista de passageiros do avião que caiu e simplesmente começam a importunar com sussurros os que se perdem na floresta (altos o suficiente para serem ouvidos) e fogueiras misteriosas, um leviatã esfumaçado que aparenta estar guardando algo, e muitas outras tensões (a maioria resolvida nas próprias temporadas em que são apresentadas, outras são deixadas em aberto para manter o espectador interessado na que segue).
Todas retiradas do desenvolvimento de uma história simples de ser descrita: Um avião cai numa ilha misteriosa no Pacífico e os sobreviventes, com a demora do resgate, vêem-se obrigados a organizar-se para superar o longo tempo de isolamento. Com o desenrolar da história, os problemas e obstáculos que formam os episódios são construídos.
Em primeiro momento o seriado parece um daqueles clichês de criações micro-cósmicas para formular um paradigma que explique as relações da sociedade em seu âmbito mais geral. Afinal, são representantes de todas as partes do mundo que são obrigados a aprender a viver harmoniosamente. São americanos, canadenses, australianos, ingleses, uma francesa, dois coreanos, um iraquiano ex-soldado da Guarda Republicana Iraquiana e outros que aparecem na segunda temporada e que não abordarei (apesar da popularidade do ermitão Desdemond) para me ater apenas aos componentes que firmam o enredo (ou seja, os da primeira temporada).
Se esta idéia de “representação do mundo” ou qualquer coisa do tipo (que por si só já apresentaria insuficiências terríveis) foi de fato a intenção dos criadores no início do seriado, já pecam pela maneira que os personagens são sintetizados:
Todas suas ações e conflitos são derivados de recalques individuais, formulados com uma tentativa de densidade dramática que apenas reforça suas individualidades e a tentativa dos diretores e roteiristas de aproximação com um “cidadão comum”. Não há qualquer possibilidade de assimilação simbólica entre os personagens e suas respectivas nacionalidades em âmbitos coletivos. Mesmo porque, quando determinados personagens aparentam fazer esta representação, são estereotipados da maneira mais crassa e preconceituosa. Como exemplo disto, temos Sayd, o iraquiano que é “culturalmente assimilado” à lógica ocidental, transformado num anti-herói-clichê que luta para redimir-se e salvar sua donzela
O que também impede qualquer tipo de interpretação profunda do seriado que envolva os simbolismos jogados ao longo dos episódios é o caráter místico de todos os conflitos de grande tensão: “Você tem fé que os passageiros da outra parte do avião sobreviveram à queda?”, “Você acredita que alguns números poderiam reger seu controle sobre o próprio destino?”, “Você acredita que a Ilha poderia dar-lhe algo se você oferecer algo em troca?”, ou “Você acredita na existência dos Outros?” (ainda me refiro apenas à primeira temporada). A construção do enredo deste seriado não poderia coerentemente basear-se em um paradigma sócio-cultural se o melhor que ele consegue conceber como articulação entre os personagens e seus conflitos é a fé de que tudo dará certo, e então simplesmente mostrar que estas prédicas religiosas estavam corretas. Como exemplos, temos as profecias de John Locke sendo concretizadas (a morte de Boone e o avião no penhasco) e seu milagre secreto movendo-o e dando-lhe forças para enfrentar as adversidades e momentos de liderança na ilha. Também há os números de Hurley, cuja ordem poderia (ou não) malfadar o destino de vários, tudo depende se temos (ou não) fé se há controle sobre o destino. Este teor de misticismo é o que reforça a tensão do seriado. Todas as profecias, mal-agouros, crenças religiosas e afins são sustentadas até o ultimo momento.
Quando estas questões são levantadas de maneira a serem abordadas desta forma, são simplificadas como perspectivas absolutas de “crença” ou “descrença”, degradando-se todos os conflitos criados a uma forma de reflexão muito mais fácil e “consumível” para o grande público. Já que não exige tanta profundidade, o seriado torna-se “divertido” e tido como uma forma de “entretenimento”.
Mas e quanto aos mapas, os Outros, os sussurros na floresta, a queda do avião ainda sem explicação e outras questões não resolvidas? São nestes mistérios que o seriado mascara seu caráter de mera forma de aquisição de lucros para as emissoras e corporações que regem o que será levado ao ar no horário
Mas e quanto aos nomes peculiares de John Locke, Danielle Rousseau, Jack, Sawyer e outros? As reflexões sobre alegorias como essas não trazem certo peso ao seriado? Mesmo se todos que assistem ao seriado lessem todo o Do Contrato Social ou Sobre o Governo Civil, a única coisa que perceberiam é que os que roteirizaram o seriado nada sabem sobre teoria política, muito menos sobre o processo de constituição da sociedade civil. Aliás, uma observação interessante é que a concepção da organização social para proteger-se de um monstro esfumaçado inominável que poucos têm consciência que existe (um Leviatã da essência humana) não é nem de Rousseau, nem de Locke, mas de Thomas Hobbes.
Quanto a Sawyer e Jack, são nomes americanos que representam o cidadão comum Americano, sendo Sawyer o sulista, assim como na novela de Mark Twain. Jack é o bom americano, o líder nato, herói de todos, exemplo de nobreza, obstinação e persistência. Sawyer é o “homem corrompido”, o lado negro desta cultura, mas que procura redenção. Daí mostra-se os dois brigando pela mesma garota, colocando-os no mesmo plano de conflito. Esta concepção de personagens é um absurdo clichê literário. É carregado de um moralismo conservador tipicamente norte-americano.
Mas são justamente estes componentes que mascaram o seriado e faz com que aparente ser o que não é: Uma construção criativa de qualidade.
Desta forma, os mistérios de “Lost”, juntamente com seu misticismo, que degradam qualquer linguagem de suspense que o seriado possa ter a algo concretamente consumível para o grande público (novamente me refiro à resolução de tensões ao longo do seriado, assim como os componentes das programações de domingo apontadas no início do texto), tornam este programa um mero pastiche de fórmulas para o “entretenimento” dos expectadores. Pode-se observar por toda internet uma febre gigantesca de fanatismo pop. Mas os núcleos das discussões relativas ao seriado são sempre sobre o quanto é aprazível determinado personagem ou situação. Os espectadores sentem-se aproximados, e até identificam-se com o que assistem. O grande foco é agradar ao público da maneira mais confortável possível, pois caso contrário, o seriado perde seu sentido. Torna-se óbvia a razão do sucesso fenomenal do seriado, mesmo entre os que criticam as tais programações de domingo: O espectador pode aceita-lo passivamente para saciar sua vontade de diversão vazia, sem sentir a culpa de estar assistindo algo que aparente ser vazio.
- Aqui a infinitude
(como telas pechinchadas)
subjaz