VESTIDO AZUL
sexta-feira, março 27, 2009
  arte em tempo de impasses
Nunca foi tão difícil definir o que é arte. Hoje muito provavelmente aquele que ousar tentar fazê-lo objetivamente será tachado de pedante e, no mais previsível dos mundos, será colocado no hall dos “autoritários-que-tentam-maldosamente-impor-um-ponto-de-vista-único-para-algo-plural-e-de-múltiplas-interpretações”. Afinal de contas, afirmar o que é arte significa expor uma certeza metafísica sobre todas as suas implicações internas e suas extensões válidas. Sendo este conceito uma atividade humana por excelência, dirão os capangas do presente que não há nada mais apropriado do que o reconhecimento de seu desdobramento como uma realização que deve ser interpretada da mesma forma que todas as vicissitudes do real.

A arte, então, torna-se um reflexo de predeterminações situadas nas mais livres associações do contingente. Não mais serão vistas reatadas as cisões cognitivas que dentro dos “preceitos idealistas” se desejava vislumbrar como um todo, tendo as promessas não cumpridas da modernidade como projeção utópica inevitável na experiência estética. Exigir uma perspectiva histórica e universal para a compreensão da arte tornou-se o mesmo que conclamar velhos fantasmas que, com maior ou menor intensidade, assombram e amaldiçoam uma antiga casa abandonada chamada “Forma”. Assim como certos marxistas tornaram-se “marxólogos”, os artistas tornaram-se “artólogos”.

Foi a própria necessidade da arte de dobar-se sobre si mesma que fermentou as capacidades que lhe são próprias (antigamente descritas como o fenômeno de destacar-se do mundo empírico e suscitar um outro com essência própria como se fosse igualmente uma realidade), tornando ela mesma responsável pelo seu desenvolvimento e também por suas crises. Conforme a realidade cotidiana e as obras artísticas deixaram de exprimir uma tensão tormentosa e inquisitiva, cada vez mais facilmente as telas, palcos, projeções, concertos e instalações reproduziam a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre nas obras.

Entender, porém, as mudanças e desdobramentos autônomos da arte, adquiridos após ela ter se desvencilhado da cultura, só era possível com uma idéia clara de humanidade no horizonte. Tal relação foi sendo minada conforme a sociedade se tornava cada vez mais desumana. Retomar esta discussão de nada servirá se o grande parâmetro de mediação for uma nostálgica comparação entre o que a arte fazia e o que ela faz. Como já escreve Adorno em sua Teoria Estética, “a crença segundo a qual as primeiras obras de arte são as mais elevadas e as mais puras é romantismo tardio”. O uso à extenuação dos parâmetros do que já se admitiu como sendo uma expressão artística é uma referência para o que ela já não contém. Ela deve voltar-se contra aquilo que constitui seu próprio conceito, mas sem fazê-lo na forma de uma negação abstrata.

Na era em que não mais se apresenta claramente identificável uma determinação social coesa, onde a relação entre classes não mais se demarca pontual e de forma que seja facilmente mapeada, mas cuja violência brutal e opressão estão racionalmente sistematizadas em sua base de legitimação, assim também se manifesta a arte, tendo como ponto de partida um presente esquizofrênico no qual a tentativa de atingir uma lógica mais profunda simplesmente se esvai no ar. É aqui, no exame de compreensão sobre o “fim das metanarrativas” que se percebe o caráter parasitário das críticas pós-modernas, que detectam uma problemática verdadeira, mas que negam todos os esquemas narrativos através de um grande esquema narrativo.

Novamente, como se inscreve no cerne de um sistema irracional, o capital se apropria da própria crítica, tornando-a não apenas aceitável, mas também produtiva, encontrando novas maneiras de tornar sublime o existente. Desta forma, nunca foi tão crucial um olhar crítico e aprofundado para as artes, pois nelas o grande campo onde a aparente falência de uma crítica que zelava pela emancipação radical destas relações auto-destrutivas está conseguindo encontrar vislumbres de uma referência que negue toda uma lógica cultural bárbara como a atual.
 
domingo, março 22, 2009
  excurso epistolar I
pois é, pedrão, meu caro, é para você que escrevo o primeiro texto de gênero epistolar deste blogue. sinta-se privilegiado. por que o escrevo? bem, antes de tudo, devo lembrar-lhe que veio de você a muito apropriada crítica quanto à ininteligibilidade de meus textos. é um ponto fraco que ainda me assombra e espero aprender a lidar com isso o mais cedo possível. acho que estou sob influência do "Carta ao pintor moço", do Mário de Andrade, que é de onde tirei aquele trecho que te mostrei outro dia sobre o caráter combativo da arte, lembra? depois disso lembrei que uma grande amiga de vez em quando escrevia pequenas cartas abertas em seu blogue. como sou vergonhosamente desprovido de personalidade, ou criatividade, roubo descaradamente a idéia. escrever para alguém, que não eu, tendo a feição do interlocutor mais claramente apreensível, talvez me ajude a manter os dois pés no chão ao tentar expor uma determinada idéia. talvez isso clareie onde encontrar o ponto particular do qual se desdobraria o universal... (despretensioso, não?) sem falar que retomar o gênero epistolar nos remete à tradição escolástica de expor uma determinação conceitual específica dentro de um acordo moral tácito entre dois fiéis que assumem um caráter intersubjetivo, mas são perdoados por estarem engajados na graça do Nosso Senhor (com o concílio de trento universitário na cola, é bom manter as boas aparências).

cara, não sabe como me animei com o seu retorno. ainda precisamos conversar direito sobre as coisas que você viu pela bolívia, o que fez, etc. seus relatórios eram bastante completos, mas há sempre algumas coisas que só são apresentadas de forma inteiriça no tête-à-tête (puta expressão de velho essa, eu sei, mas é tão fofa...). sempre que comparecíamos em alguma reunião mala entre centros acadêmicos, ou coisa do tipo, confessava pra gabi "nossa, se o pedrão estivesse aqui provavelmente ele diria alguma coisa engraçada e nos tiraria essa vontade de enfiar um garfo no olho de tanto engolir asneira alheia (rimou!)". sem falar na insegurança (unicamente de minha parte, pois a galera que ficou tá o capeta no benê) e tudo e tals de não ter você e o resto do time da velha guarda de meu deus (expressão idiomática roubada do rococó). futricagens e pieguices à parte, me convenço cada vez mais de que sou imbecil demais pra levar jeito pra coisa. a perspectiva crítica que tenho assume um caráter por demais inconsistente. para mim, um engajamento verdadeiramente radical deve negar o existente, o visado, a injunção positiva por trás do que tem sentido numa mediação alienada. o problema é que não encontro os pontos de mediação que possibilitem, a partir desta perspectiva parcialmente distanciada, encontrar formas de interação que atendam a essas pressuposições, tendo o dado concreto (bárbaro, portanto) como noção particular a ser negada e "transformada". não é nada fácil cobrar de si mesmo a negatividade total diante da necessidade constante de lidar com um imperativo de ação que, no final das contas, justamente pela forma e ordenação interna pela qual é atendido, obedece à solicitação de um ordenamento cínico, um stablishment obsceno. nos vemos obrigados a fazer a pergunta leninista diante de um cenário adorniano ("o que fazer?"). e percebo que ajo diante disso como um neurótico diante de seu objeto de desejo, ou seja, de forma patética e arrogante encontro minha satisfação abandonando o objeto e gastando todas as minhas forças no ato de desejar (nunca leu "Quando Nietzsche chorou"? obra-prima da psicanálise de auto-ajuda!). e no meio disso tudo, acho sinceramente a sua postura correta (assim como de nossos colegas, e de outros amigos queridos que um dia gostaria que você conhecesse): manter-se firme, mesmo diante do fim do mundo, mas sem deixar de dar umas boas risadas (brecht já dizia que aquele que não tiver um pingo de senso de humor jamais poderá entender completamente o que é a dialética). acredito que você, tirando o rubinho (que já conhecia faz tempo), foi a primeira pessoa no meio universitário com quem comecei a trocar uma idéia firme. o engraçado é que, se lembrar bem, nos conhecemos antes do meu ingresso à puc. foi na prova de vestibular para a fuvest, lembra? faz pouco tempo. não somos velhos amigos. mas algumas das amizades que mais valorizo hoje não datam de mais de três ou quatro anos. o mais humanamente coerente, portanto, seria entender que essas coisas não se deve hierarquizar e não se pode encontrar uma medida comum de valor. meio clichê (além de piegas), ainda que serenamente confortador (ou seja, digno de um livro de auto-ajuda).

se pá é isso, rapá.
nos vemos por aí, conforme as oportunidades.
abraços inquietos!
 
domingo, março 15, 2009
  intermitência do mundo
fadados ao iluminado,
jamais à luz.
 
sábado, março 14, 2009
  dia internacional das mulheres











foto de Elliot Erwitt

Gostaria muito de poder escrever “camaradas mulheres, negai a tirania falocêntrica sob a qual estão submetidas, erguei vossa bandeira e lutem por serem o que são num mundo onde são excluídas e chamadas de fracas e inferiores”, mas infelizmente o mundo se complicou demais para que um grito de luta tão velho desse conta da coisa. Essa busca heróica pela realização da mulher livre e independente criou um monstro. Mas como toda criatura, seus desdobramentos internos fazem-nos compreender melhor o que se poderia chamar de “Criador”. A busca pela verdade feminina, que sobrepujaria as calcinhas rosas de rendas com lantejoulas reluzentes e as saias menores que 40 cm, demonstrando que a realização de uma determinada feição identitária da mulher é apenas um semblante resignado que atende à brutalidade fálica das exigências sensuais masculinas, não mais corresponde à radicalidade que o engajamento feminista necessita. A satisfação espiritual das mulheres é atendida pelas linhas de produção, onde a cultura não é simplesmente reduzida a uma mercadoria, mas a própria mercadoria é culturalizada. Esse real tornado semblante, essa profundidade feminina tornada uma identidade efetivada no existente, nos arrasta para a mais cruel e intragável das conclusões: "A mulher não existe". A identidade feminina tornou-se mais um rosto de areia apagado pelas ondas de mais uma praia do fim da História. A identificação da mulher como tal atende a um imperativo de reprodução, tal qual qualquer outra subjetividade composta em uma racionalidade social mediada por uma ordem irracional efetiva. Se a verdade feminina, contudo, nasce com sangue e dor, ela não pode ser negada com simples indexações epistemológicas perfeitamente determinadas. A mulher se torna consciente sem os artifícios narcísicos masculinos, assumindo o olhar narrativo sem que a objetividade fálica se realize. Essa efetividade de uma consciência sem a base que a determinaria é a prova mais visível, talvez, que a constituição falocêntrica masculina é tão falsa quanto aquela que tentava inferiorizar pela ausência de seus pressupostos positivos. O “ser mulher” guarda dentro de si o irracionalismo da subjetividade alocada em qualquer identidade. Eis que surge a radicalidade de vossa condição existencial: Tudo aquilo que faz com que vocês pensem, sintam, desejem como o que entendem sob a idéia de que são mulheres, é aquilo que reproduz uma dupla relação opressiva – por um lado atendem perfeitamente a uma subjetividade que precisa ser exteriorizada em toda sua profundidade e intimidade relacionada a uma falsa universalidade, onde todos são politicamente corretos e, portanto, pró-femininos, mas ao mesmo tempo atende aos imperativos necessários para que se encaixem no sistema de produção, na divisão do trabalho, no ordenamento da exploração. Esse vazio violentamente imposto a vocês, que vêem o próprio sangue todo mês, que têm sensações, idéias e paixões reduzidas a uma falsa interioridade, mas que assustadoramente se torna efetiva (pois são mulheres!! - ou seja, é um vazio que preenche), são vocês que sentem de forma mais clara o ponto nevrálgico onde o horizonte depressivo e acomodado encontra a justificativa de uma revolta. Revolta que se desdobra para todos os outros, que também são meras formas opacas com falsos conteúdos. E é neste sentido que apóio a vossa luta, eu, que sou tudo aquilo que vocês devem negar, que tenho como pressuposto da minha forma de interagir com o real a contribuição para o vosso abuso, opressão, humilhação, que sou, quer eu queira ou não, vosso inimigo, desejo com toda sinceridade vossa vitória, assim como um suicida dispara uma arma contra o próprio crânio desejando que milagrosamente sobreviva, assim como alguns perdidos de gerações anteriores conseguiam desejar o impossível. Acho que é só. Beijos. Bom fim de semana.


 

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