VESTIDO AZUL
quarta-feira, janeiro 27, 2010
  mais um comentário sobre o Haiti

Pela primeira vez ao longo de toda a cobertura midiática sobre o terremoto no Haiti um veículo da “grande imprensa brasileira” redigiu o nome de Jean-Bertrand Aristide não como mero dado contextual da história recente haitiana (como enfeite didático naqueles boxes em canto de página com o intuito de mostrar que não deixou de falar, mas não levará em conta para nada...), mas como referencial político. Trata-se do texto redigido pelo correspondente pela Folha de S. Paulo em Porto Príncipe, Fábio Zanini, publicado no dia 31 de janeiro, intitulado “Mobilização anti-Brasil ecoa no pós-tremor”.


Como a manchete não poderia deixar mais claro, trata-se das primeiras manifestações noticiadas por um grande veículo sobre as tensões internas suscitadas pelas mobilizações externas (obviamente tendo a brasileira e americana como principais) no processo de “resgate” da capital em ruínas. E como era de se esperar do veículo em questão, o tom é de total desqualificação e descaso sobre os manifestantes. Afinal, como entender a caracterização dos manifestantes como “franja acuada e radicalizada” da sociedade haitiana?


Mas, justiça seja feita: não se trata, como em outros momentos ditosos do periódico tratando de outros países, de um apoio arrogante ao golpe de estado apoiado e orquestrado pelo governo Norte-Americano, ou de uma tomada de partido sobre as forças políticas tensionadas da conjuntura haitiana. As sutis pinceladas feitas para pintar os manifestantes apoiadores de Aristide como maconheiros alucinados e delinquentes que nada sabem servem propósitos mais sofisticados. Segue abaixo meu trecho favorito da reportagem assinada por Zanini (desculpem ter que personalizar tanto... sabe-se lá o que de fato saiu da cabeça do jornalista e o que foi alterado num generoso processo de edição):



Ao longo de dez dias em Porto Príncipe, a Folha percebeu bem mais demonstrações de apreço aos brasileiros entre a população do que o contrário. O Brasil lidera militarmente a Minustah, a força de paz da ONU, que em geral é bem aceita pelos haitianos.

Mas a franja radicalizada existe e é atuante, não apenas nas favelas, mas também no movimento estudantil. O pior cenário para o Brasil seria o de uma aliança entre as massas empobrecidas das favelas e essa elite politizada.



Uma combinação de panfletagem pela competência administrativa bélica justificando e encobrindo (ao mesmo tempo) uma tensão de classes cuja culminância autoconsciente resultaria num desastroso cenário para a imagem de boa-vizinhança da diplomacia brasileira. Tenhamos, porém, o cuidado de não cair num esquerdismo crasso. Não se trata da “ameaça da revolução amedrontando os frágeis e mesquinhos interesses burgueses”. Primeiro porque ninguém se assusta com o termo revolução (que no sentido aqui implicado está em outra galáxia para o senso-comum que o jornal em questão atende), e segundo porque, diante do cenário de ruínas apresentado, uma crise de governabilidade assusta bem mais que uma irrupção social (independente de sua possibilidade existir ou não; no caso, está mais para um óbvio não). Portanto, argumentos eloqüentes sobre o passado histórico revolucionário haitiano para justificar a saída das tropas brasileiras, americanas e da ONU não passam disso mesmo: eloqüência pura esvaziada de substância concreta, mais parecendo um truque para mascarar falta de ideias e argumentos.


Como, então, entender o discurso da Folha de S.Paulo (que, obviamente, é apenas um exemplo, pois se trata de uma forma geral de racionalizar a tragédia haitiana)? A desqualificação gratuita dos manifestantes segue uma fórmula despolitizadora já amplamente difundida, utilizada para justificar as mais escabrosas formas de engajamento (que carinhosamente batizei de "Argumento Bono Vox"): “Estamos falando de mais de 100,000 mortos! Como ousam discutir enquanto famílias inteiras estão morrendo e precisando de ajuda? As tropas estão aí para ajudar, o que mais vocês querem? Vocês não percebem que não podem contar com mais nada? Que outro recurso imediato vocês possuem?”. Daí a alfinetada no texto devido aos partidários de Aristide, apesar dos “aplausos e sinais de polegares levantados em sinal de positivo” por parte de sobreviventes auxiliados, “não se convencerem” (como se após perder um membro do corpo, ficar com os cadáveres da família expostos por dias, ficar não sei quanto tempo sem comer, etc. fossem extremamente ponderados os aplausos de quem finalmente recebe ajuda [mas a questão é que o argumento é que qualquer tipo de ponderação neste contexto é absurdo e repreensível]). Esta polarização entre “politicagem” e situação emergencial serve um mecanismo ideológico que esconde processos que melhor se realizam quando, de fato, ocorrerem sob uma névoa espessa.


A doutrina do choque sobre o Haiti

O Haiti se tornou o mais novo cenário propício para a realização do que a jornalista Naomi Klein alcunhou de “doutrina do choque” (The Shock Doctrine). Trata-se da arquitetura de programas de governabilidade concebidas por grandes corporações em parcerias público-privadas utilizando o que resta das ruínas de espaços de atividade social para a implantação de políticas de livre-mercado e afins. Removendo os eufemismos, estamos lidando com a exploração da fragilidade de cenários pós-guerras, terremotos, furacões, tsunamis etc. para a implantação de uma doutrina política de gestão pública como lógica de competência administrativa de uma grande empresa.


Estou ciente do quanto isso tudo soa como “teoria da conspiração” boba e paranóia vermelha de um pentelho vermelho. Então vamos ao exemplo.


Talvez poucos brasileiros conheçam uma grande think tank (um instituto político que serve apenas para gerir linhas políticas de determinada tendência) multibilionária chamada Heritage Foundation (nome seguido sempre do original slogan Leadership for America). Trata-se de uma das maiores instituições políticas que representa os partidários do “proud to be conservative” norte-americano. Ela foi responsável pelo planejamento de todo o processo de “revitalização” das áreas atingidas pelo furacão Katrina. Entre outras medidas, estavam o estímulo tributário para “iniciativas de livre-mercado”, imediata contabilização de negócios para suprir a depreciação de todos os ativos imobiliários investidos na região (o que aumentaria o fluxo da especulação) e a privatização do transporte público e qualquer tipo de infra-estrutura nas áreas afetadas pelo desastre.


Abaixo transcrevo (e tento traduzir parcamente) parte da mensagem que a Heritage Foundation tem circulado sobre o Haiti:



In addition to providing immediate humanitarian assistance, the U.S. response to the tragic earthquake in Haiti offers opportunities to re-shape Haiti’s long-dysfunctional government and economy as well as to improve the public image of the United States in the region.


Além de providenciar ajuda humanitária imediata, a resposta dos EUA ao trágico terremoto no Haiti oferece oportunidades para reerguer os há muito instáveis governo e economia do Haiti, assim como para aprimorar a imagem pública dos Estados Unidos na região.



Acredito que a mensagem está razoavelmente clara, mas não é nada simples deduzir no que ela implica ou o que justificará. O que se pode dizer com segurança é que a “doutrina do choque” é uma possibilidade real no Haiti, mas, por ora, não há como saber de que maneira ocorrerá. Trata-se de um país que sofreu todos os estupros possíveis em sua história, e sua população é calejada para saber que qualquer ajuda virá com o escarro de interesses escusos. Há, porém, uma nova lógica de governabilidade ganhando hegemonia, e agora passa a mostrar suas garras. É preciso investigar a composição orgânica da revitalização de Porto Príncipe, entender quem se beneficiará e quais interesses serão atendidos. Mas, além disso, é preciso atravessar a névoa espessa da despolitizaçao do engajamento imediatista, que, por meio de um discurso moralista distorcido, afasta nossos olhares das raízes dos problemas.


A metástase do gozo sobre o Haiti

Há mais uma consideração sobre o terremoto em Porto Príncipe que gostaria de fazer. Será curto, juro (ao menos na intenção).


No dia 20 de janeiro, pela mesma Folha de S.Paulo (juro que não é birra, é que eles não se ajudam), foi publicada uma reportagem pelo mesmo Fabio Zanini (ele é o enviado especial, gente, não tenho culpa) com ilhado título otimista “Otimismo começa a surgir em meio ao caos”. Reproduzo as partes que me interessaram:


[...]

Em meio às pilhas de destroços e aos prédios inteiros inclinados em ângulos de 45 graus, é possível vislumbrar alguns traços de otimismo. Perto do aeroporto, tomado pelos americanos, a barbearia Perfect Hair Design estava aberta, funcionando e lotada. Numa rua do centro, um restaurante simplório oferecia pratos de milho e arroz a cerca de R$ 5.

Nos arredores do estádio nacional, interditado porque ainda pode desabar, um semáforo funcionava perfeitamente no que já foi um cruzamento movimentado, adicionando um toque de surrealismo ao apocalipse haitiano.
O movimento do comércio não deixa de ser surpreendente, tendo em vista que a maior reclamação continua sendo a falta de dinheiro.
"Não tenho mais nada para fazer aqui. Vou embora para a República Dominicana", disse Michella, mãe de quatro filhos.
Os saques continuam a mercados e lojas, e a retribuição imediata da população, também. Na avenida Jean Jacques Dessalines, a principal da capital, o corpo de um homem negro e pelado, com os pés amarrados, jazia de costas no asfalto quente, coberto de moscas.

[...]


Imediatamente me veio à mente uma passagem da introdução de um livro do filósofo esloveno Slavoj Zizek, chamado As metástases do gozo (The Metastases of enjoyment). Nele, para ilustrar o motivo optado pela organização do livro, o autor comenta um causo passado na primavera de 1992 (primavera para nós, outono para eles...) num campus de uma universidade americana, após ele ter dado uma palestra sobre Alfred Hitchcock. Uma das pessoas que atendia à palestra o abordou dizendo “Como você pode discutir um assunto tão espúrio quando seu ex-país está em chamas?”. A resposta foi: “Como é que vocês aqui nos EUA podem falar sobre Hitchcock?”. O que Zizek quis dizer com esta resposta é que não há absolutamente nada de errado ou traumático em vê-lo se comportando como convêm a uma vítima e testemunhar os horrores inomináveis ocorridos em seu país de origem (como ele mesmo coloca, “tal comportamento não pode senão suscitar compaixão e um falso sentimento de culpa que é o negativo da satisfação narcísica, ou seja, a consciência do meu público de que eles estão bem enquanto as coisas vão mal para mim”). Ele violou uma proibição silenciosa quando agiu como se as coisas estivesses bem e começou a falar sobre Hitchcock, ao invés dos horrores passados na Ex-Iugoslávia. Foi como se a normalidade que permeia a “vida comum” de quem observa a tragédia se mostrasse uma ilusão, pois era reproduzida por alguém que não vivia no mesmo estado de coisas. Esta mistura entre prazer narcísico e horror por parte de quem observa a atrocidade, tendo o prazer espalhando-se de forma degenerativa, é o que Zizek chamou de “Metástases do gozo”, sendo dividido entre dois fatores (que são o que marcam a divisão do livro): O político e o sexual.


A passagem publicada na Folha, tão solenemente descritiva e sem grandes galanteios estilísticos, reúne descrições frias mediadas por uma perspectiva moral quase imperceptível de tão natural que soa: “é possível vislumbrar alguns traços de otimismo”. Mas que otimismo é esse, que soa tão surreal ao repórter? Em verdade, não é possível ter grandes esboços sobre como as pessoas interagiam, pois se entende o otimismo à partir de um sopro de retorno à vida comercial. Claramente esse pequeno sopro de normalidade violou o gozo narcísico da culpa. A única forma de compreendê-lo mantendo intacta a consciência do mentiroso que mente para si mesmo é dizer: “veja que bonitinho: eles querem ser como nós”.

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sexta-feira, janeiro 15, 2010
  pequeno comentário sobre "Abraços partidos", de Almodóvar
Infelizmente não poderei fazer algo mais elaborado. Quem sabe quando passar o sufoco do cobrecos.

Acredito que o filme tenta fazer uma revisão crítica em velhos dilemas da apreensibilidade do objeto artístico tendo como base uma nostalgia por projetos estéticos em crise (ao menos considerando a ambição que lhes deu origem). Tudo isso dando, e minha opinião, com os burros n'água ao fim. Num primeiro momento há a aparência de uma desestruturação composicional da narrativa fílmica. Assim parece ao expor nos primeiros segundos do filme o processo de construção do enquadramento do rosto da atriz Penélope Cruz. Com o progredir do filme, percebe-se que, em verdade, o que se via não era a atriz compondo a personagem do filme, mas sim a personagem do filme que faz uma atriz que está a compor a personagem de um filme. A desestruturação exposta culmina num plano autoreflexo, tendo a desconstrução como mera referência de gênero que compõe a estrutura narrativa. Este círculo vicioso, esta má infinitude, acaba por permear composição do enredo e dos personagens. Dá com os burros n'água porque cria aspirações eloquentes de rompimento mediado de uma ordem fragmentária (metáfora clara do jovem reorganizando as imagens de seu passado como projeto espontâneo, e também de Harry Cane tocando a tela da televisão, tendo suas mãos no mesmo plano construído no início do filme, quando toca os seios da boa samaritana, como se à partir de agora devesse ser cobrado da forma obcena aparentemente contestadora uma relação de cognição [são as duas cenas mais belas do filme, em minha opinião]) aceitando e celebrando sua não unidade.

Acredito que podemos nos alegrar por, apesar das fortes limitações, Pedro Almodóvar preferir questionar e radicalizar a forma que lhe deu fama. (diferente de seu amigo resignado, Caetano Veloso)

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