Tornou-se demasiadamente ingrata a produção cinematográfica no nosso tempo. Mesmo que as mais ambiciosas, bem articuladas e arquitetadas tomadas dentro de um corpo programado sejam produzidas, os artistas devem ainda considerar a desconstrução que a ótica da cultura de massa projeta sobre qualquer substância imagética. Tal problemática se depreende do já conhecido jargão de estudo lingüístico, de que “o visual é essencialmente pornográfico”, no qual a pesquisadora Roneide Venâncio Majer ainda completa: “Sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento; nessa óptica, pensar seus atributos transforma-se em algo complementar se não houver disposição de trair o objeto”.
A composição simbólica ao redor da imagem bruta incide na “traição” referida, e é o que acontece em qualquer obra cinematográfica. Quando esta simbologia se desfaz e é degradada a um material concretamente consumível, reduzindo o que se poderia chamar de arte a um mero estimulante sensorial, retorna-se à crueza pornográfica – consuma-se, então, sua condição de produto mercantil e se torna reificada. Desta forma, a obra não possui mais nenhum valor qualitativo em si, mas apenas na medida em que possa ser “usada”.
É justamente com estes conceitos que o diretor David Fincher brinca em seu último filme, “Zodíaco”.
O gênero onde as histórias de detetives assentam-se é, em si mesmo, emblemático sobre a questão da arte reificada. O que acontece normalmente quando lemos ou assistimos a uma história de detetive tradicional? Lê-se a história pelo final. Temos uma teia de personagens e acontecimentos nebulosos (que podem ser mais ou menos extensos dependendo da prolixidade do autor/diretor) que se esclarecem com um final revelador e “surpreendente”. Em outras palavras, temos duas horas de filme, ou um calhamaço de páginas que não serviram para nada, senão para prestar de meio para um determinado fim. Concretiza-se a lógica mercadológica por traz deste enredo, onde seu desenvolvimento segue uma razão de ser completamente utilitária. O expectador não percebe, mas poderia jogar no lixo o restante do filme ou livro, pois o que importa é o deslumbramento final.
Em “Zodíaco”, através de uma ironia sofisticada, David Fincher desconstrói esse procedimento.
Não há grande revelação, nem catarse procedida de um grand finale. Em verdade, os últimos momentos não podem ser interpretados como uma cena fetichizada. O que as cenas derradeiras passam, aliás, com sua ponte direta com a contemporaneidade, ganha algum sentido apenas na forma que a trama é amarrada. Caso contrário, se de fato a conclusão intencionasse ser “surpreendente”, estaria claro que não houve sucesso, pois o que ocorre é um anticlímax. O que possibilita ligar todos os elementos do filme é a peculiaridade do tal serial killer.
Tirando a obsessão dos personagens por capturar o tal psicopata, os únicos elementos que sustentam a idéia de um mesmo indivíduo matando, anômala e aleatoriamente, várias pessoas, são as enigmáticas cartas enviadas aos editoriais de alguns jornais e a um departamento de polícia. Tirando a tensão que a trilha sonora brusca, os takes esquivos e os súbitos momentos de escuridão proporcionam, não há sequer unidade na figura do “homem” que comete os crimes, quando encenados na tela.
O rosto, a fisionomia e a forma de se vestir e matar sempre muda (o que é comentado de forma bastante irônica no próprio filme). O público é convencido de que o assassino está à espreita apenas pela obsessão dos personagens que seguem a sua trilha. Eis a ironia referida: Mesmo expondo aos olhos da platéia que não é a mesma pessoa cometendo as brutalidades, as construções estéticas utilizadas pelo diretor insistem na proximidade do perigo. David Fincher, desta forma, desconstrói o clichê da velha “fórmula” da história de detetive utilizando os recursos estilísticos deste mesmo gênero, conseguindo até mesmo inverter os valores do próprio no filme.
É também da praxe dos livros de Agatha Christie, Arthur Conan Doyle e genéricos expor inicialmente uma situação, um status quo de plena harmonia (geralmente numa grande mansão ou território que denote uma situação social que prospera – no caso dos dois citados, a pequena-burguesia no período entre e pós guerras e a burguesia industrial inglesa de fins de século XIX, respectivamente), e que essa atmosfera é afligida pelo terrível assassino outsider misterioso. A procura pelo assassino torna-se uma militância em prol do retorno aos tempos de paz. Em “Zodíaco” o tal status quo harmonioso, momento em que o filme começa, é a comemoração do dia da Independência Norte-Americana, famigerado 4 de Julho. Tornar mais óbvia a referência à problemática ideológica é impossível. O assassino do Zodíaco não era para ser apenas um ser perturbado que percorre o Estado da Califórnia, era para ser na verdade o terror que ameaça o amerian way of life (a tomada inicial percorrendo os famosos quarteirões suburbanos da Califórnia á lá Short Cuts carrega uma simbologia forte quanto a isso).
E o que acontece no desenrolar da história? A população identifica-se e compactua com o suposto assassino! Transformam o “Zodíaco” num fetiche. O assassino, que não é ninguém, torna-se todos. Inúmeros anônimos de todos os cantos do país passam a tentar assumir a identidade do serial killer. Com acidez e ironia, revela-se que a brutalidade e frieza retratados está no zeit geist estado-unidense, no próprio cerne da ideologia que sustenta a configuração da sociedade em que vivem, e não em algum indivíduo específico.
E a ironia se espraia por todo o filme, sustentada pela tensão ao redor de vários elementos: Do pedaço de roupa ensangüentado, da caligrafia dos suspeitos, do relógio de um, da fala de outro, um amontoado de provas circunstanciais que adornam ainda mais a configuração estética que é destruída justamente pelo conteúdo simbólico do filme. E vai mais além. Quem é que fica obcecado por desvendar esse mistério? O escoteiro! O regrado que segue à risca o modelo de vida imposto pelo Capital. Vemos todo o desenrolar de sua história ao mesmo tempo em que o assassino comete suas atrocidades. Acompanhamos sua ascensão social, seu casamento, a formação de sua família, até o momento em que ele sente que o criminoso precisa ser pego (justamente quando ninguém mais quer pega-lo).
Mais um último detalhe: O personagem que faz o cartunista, que posteriormente descobrimos que é o mais próximo de um protagonista que o filme apresenta, não envelhece. O filme começa em 1968 e termina (se não me engano) em 1992. Vinte e quatro anos se passam e todos os personagens ou perdem cabelo, ou tornam-se decadentes, ou engordam, ou, quando crianças, crescem, mas este personagem específico, juntamente com sua esposa, não muda sequer a cor do cabelo. Interpreto com isto que ele representa algo metafísico, que paira ao longo dos anos e que nos alcança até hoje. Por isso o final não é jogado: Precisava mostrar que não se trata de um filme de época, mas de espírito de época.