“[...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo novas relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo.”
“A sobrecarga de presságios desencadeada por uma tal conjunção combina bem com a psicologia de uma nação falhada que encontra razões para envergonhar-se de um dia ter sido chamada de país do futuro”.
Caetano Veloso, sobre os relógios de 500 anos do Brasil no ano 2000, em Verdade tropical
“
This is not a system, it’s a country!”
Detetive John Mclane, interpretado por Bruce Willis em Duro de Matar 4.0
Fiquei devendo um post para responder a comentários muito decorosos e provocadores feitos já há mais de um mês. Peço que desculpem o tanto de espera, pois andei ocupado e o mundo esteve girando de tal forma que foi meio difícil de acompanhar. O que segue não é uma tentativa de prover soluções ou de encontrar o elo perdido sobre as questões colocadas. Está mais para uma recapitulação minha que talvez fique mais rica se compartilhada com meus colegas.
Em sua tentativa de decifrar o espírito burguês brasileiro, Florestan Fernandes parte da concepção weberiana de que o “espírito capitalista” antecede a formação do capitalismo, mas sob o escopo pouco ortodoxo de que o “espírito capitalista” se altera conforme sua organização e adequação ao seu lugar determinado no sistema. A consolidação da institucionalidade liberal deu-se, portanto, como um empreendimento portentoso de uma unidade moral dada, mas que precisou remodelar suas arestas para suportar os troncos e barrancos desconhecidos. A "utopia" e a "ideologia" liberal tiveram de ater-se a formas preexistentes de organização econômico-social que nada tinham a ver com o conceito dado. O que se pôde chamar de “sociedade civil”, postulada pela consolidação de um Estado nacional independente, foi uma extensão necessária dos antigos estamentos senhoriais. A democracia liberal brasileira nasce, portanto, sob a condição da (lembrando do estudo de Maria Sylvia de Carvalho Franco) existência de “homens livres” numa dinâmica social escravocrata. A inadequação e monstruosidade conceitual são reconhecidas desde seu nascimento, percebidas por todo o espírito conservador que lutou para arrefecer e conciliar as partes não integradas do penhor desta igualdade. O título do célebre ensaio de Roberto Schwarz, como ele mesmo se viu obrigado a alertar, não foi dado para soar como uma máxima reveladora ou axiomática sobre o espectro ideológico brasileiro. Em verdade, é o exato oposto. “As idéias fora do lugar” é um título irônico, uma galhofa sobre o “pensamento lúcido” brasileiro, que constatava o fato de as idéias estarem fora do lugar desde os primeiros passos da chamada “integração nacional”, geralmente pela voz do extremo conservadorismo, entendendo as utopias liberais como impropriedades justamente pela existência da escravidão. Joaquim Nabuco, a figura histórica mais ambígua e, sem dúvida, a personalidade emblemática do período histórico que viveu, muito acerta ao chamar as forças conciliadoras de “reacionárias” (por isto, como Luís Felipe de Alencastro muito bem recordou, convido os não-marxistas que, porventura, estão a ler este texto, a adotarem o termo, pois não se trata de uso exclusivo para vermelhos...). Havendo uma ordem social dividida por latifundiários, escravos e “homens livres”, apenas os dois primeiros encontravam respaldo material de adequação dentro da dinâmica social. O primeiro e o segundo, por razões óbvias. O terceiro, como Shwarz salienta, dependente de favores, interage sob a ideologia burguesa concebendo-a como “ornato e marca de fidalguia”, operando passivamente com as elites, compartilhando de suas aspirações e sonhos de auto-realização. A ideologia burguesa, que tinha sua coerência traduzida materialmente por uma sociedade industrial, ganhava respaldo nacional pela experiência (atualizadíssima, diga-se de passagem) da dualidade desintegrada como formação cognitiva que, como um sistema de oposições que tinha sua unidade manifesta conforme a necessidade imediata, tinha-se como dado empírico tanto o atraso do desajuste colonial, como a lepidez ideológica de uma elite em contato direto com o sistema capitalista internacional e os imperativos de reprodução do capital.
Desta experiência ideológica dual nasce o que Antônio Candido chamou de “consciência amena do atraso”. Eis as idéias fora do lugar como preceito necessário para sustentar as inadequações filosóficas e econômico-sociais que compõem a normalidade do Estado nacional tupiniquim. É necessário que se acredite que este é um país de futuro. A busca por uma unidade homogênea que conciliasse os pólos opostos sem que anulasse as disparidades que compunham fator orgânico da atualização brasileira na ordem econômica global. Foi Caio Prado Jr. quem melhor compreendeu que no Brasil, a penetração do capitalismo foi resultante natural da evolução de um sistema econômico em que o país já estava enquadrado. Brasil colônia de ontem era, desta forma, justificadamente, Brasil nação de amanhã. Os saltos de integração sempre foram historicamente pautados pela capacidade de dinamizar o moderno pelo arcaico. Assim, Chico de Oliveira decifrou a mistificação cepalina, entendendo a formação da sustentabilidade do preço de custo da força de trabalho numa dinâmica social desprovida de estrutura mínima de acumulação primitiva, tanto mais para atender imperativos de reprodução de capital industrial, pelo trabalho informal, ou seja, tendo a miséria adensada nas periferias urbanas como atividade social produtiva na contabilidade de um setor terciário não consolidado em relação à industrialização, que ainda engatinhava em termos estruturais, e que era compensada pela internacionalização da economia interna, por trustes ou inversões financeiras. O mito sobre os interesses integradores nacionalistas da burguesia brasileira foi desmentido por FHC, que
O que se vê em absolutamente todas as camadas e instâncias da “unidade” brasileira é uma capacidade monstruosa de comportar dimensões temporais e determinantes existenciais opostos na mesma dinâmica de ordenamento da realidade. Uma unidade interna cujo centro de gravitação ontológico é uma antítese externa, e depende que assim permaneça para que a organização do mundo tenha seu sentido absoluto intocado, independente da não existência dos pressupostos que deveriam lhe dar substancia (em outros termos, José Antônio Pasta Jr. brilhantemente identificou esta relação chamando-a de idéia fixa).
O resultado final é um Estado de direito galgado por uma unidade interna projetada pelos pressupostos modernos mais sofisticados, mas sob a necessária manutenção de instâncias soberanas de exceção. Assim é a polícia, que, nas periferias, literalmente decide de forma sumária quais cidadãos vivem ou morrem em relações imediatas, a autonomia do Banco Central, que com “cartas circulares” ultrapassa leis federais, e uma dinâmica de funcionamento dos três poderes que simplesmente empaca se não lança Medidas Provisórias
Levando estas questões em consideração, entende-se, por exemplo, porque se torna coerente a idéia da escravidão como continuidade natural da cultura africana e concessão por parte dos próprios escravizados (argumento de Demóstenes Torres para justificar suas colocações sobre cotas raciais), já que a competência administrativa se descola do entendimento da dinâmica social escravocrata para compreender a inserção da forma trabalho nos primeiros passos do capitalismo colonial. Ou dos chiliques e escândalos sobre o PNDH3, que, ao apontar a necessidade de rever contradições herdadas da ditadura e, por conseqüência, algumas das formulações pétreas do nosso estado democrático, toma forma de uma “ameaça totalitária”, já que o estado de normalidade depende da gestão destas contradições, e não de sua superação. Assim também deve ser compreendida a presença militar brasileira no Haiti, que, além de ser braço auxiliar num experimento para a formação parasita de capital primitivo, é também (seguindo a intuição de Paulo Arantes sobre a questão) um laboratório de atividades de forças armadas para a preservação de uma dinâmica social interna.
Acho que aqui entra tudo. Conflitos agrários e urbanos, ampliação da estrutura e da população carcerária (e aqui inclui o terrivelmente complexo sistema de relações sociais, que funciona mais como extensão de divisa social do que de reclusão, como se deseja acreditar), as questões de gênero, da diplomacia (que também é muito mais complexa do que aparenta – considerando que a pureza da unidade democrática brasileira, pautada pela exceção, é obrigada a pautar-se pelo estado de exceção do que David Harvey chamou de novo imperialismo, manifesto nas relações com o Irã e, mais recentemente, na Palestina)...
Como esta é apenas uma recapitulação em forma de convite à reflexão, paro por aqui. Não é possível tirar conclusões maiores de fatos específicos sem análise detalhada, e infelizmente não tenho competência para isso. Acho que a única coisa que posso fazer é alertar que, ao se debruçarem sobre estas questões, se conseguirem encontrar algo que passe conforto e segurança sobre o futuro, peço que parem, reflitam, e reconsiderem. O que se vê é uma sociedade nova a se plasmar. Ainda é muito cedo para dizer o que será, mas qualquer atribuição mais leve que “abominável” para caracterizá-la será simplesmente mais um esforço voltado para a auto-enganação.
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