VESTIDO AZUL
sábado, março 12, 2011
  8 de março não expresso

Talvez se trate de uma impressão isolada, só minha, mas o dia internacional das mulheres passou batido este ano. Óbvio que não ignoro as manifestações e atos organizados pelos diversos setores de luta que já cultivam a herança feminista, a denúncia contra as vicissitudes do patriarcado numa sociedade afeminadamente fálica, que contra-ataca com a conciliação da falaciosa dinâmica da “pluralidade” e “diversidade”, aplicadas sobre a tipificação da “igualdade de gêneros”. Saúdo tais intervenções reconhecendo bravura e resistência raras que devem ser cultivadas a todo custo. Mas não me refiro ao infelizmente restritíssimo espaço da militância de esquerda (eu sei, termo amplo e genérico, mas emprego num sentido elementar para relacionar um engajamento que identifica com mínima inteligibilidade a questão de gênero como inegavelmente uma questão política). Me refiro à apreensão mundana, de senso-comum, que inevitavelmente reorganiza e exprime o dia 8 de março como acontecimento internacional. Não senti nenhuma apreensão mundana sobre o dia. Pareceu que o dia internacional das mulheres foi como um “dia da secretária”, ou “dia do funcionário público”, ou algo que o valha. Não sei se me faço entender. Com um 8 de março engolido pelo carnaval, pela animalesca demanda por imagens de bundas e curvas bronzeadas adornadas com lantejoulas e figuras de temáticas aleatórias, atadas intimamente pelo renovado ufanismo nacional-identitário pós-era Lula, ficou difícil manter um espaçozinho sequer para que até mesmo a forma burra de entender o 8 de março se expressasse. Assim, devo admitir que fiquei emocionado ao ver, no dia 8, pelo Democracy Now, os protestos da praça Tahir, no Cairo, serem interrompidos para que as mulheres ganhassem espaço e fizessem uma intervenção própria, que ressaltasse o fato de o processo de transição (para o quê, ainda não se sabe – e não se deve perder de vista que é exatamente por isso que se trata de um acontecimento instigante para qualquer ser vivo pensante...) não significaria nada se também não contemplasse a luta das mulheres egípcias. Lembrei das senhoras nas sacadas dos prédios de Alexandria, Cairo e Suez, jogando garrafas de água, panos e papel higiênico para que os manifestantes se protegessem das bombas de gás lacrimogêneo, enquanto gritavam palavras de ordem e cânticos de luta. Lembrei de como foram valiosas a lições que aprendi com minhas colegas feministas, que não esquecem a herança de luta que carregam mesmo quando todas as aparências cobram o contrário (o que me fez sentir ainda mais saudades da gabi, quem espero ver em breve, com relatos sobre uma terra pronta para explodir). Pensei na percepção politicamente correta de diversos setores, satisfeitíssimos com o fato de termos uma mulher no mais alto cargo do poder executivo brasileiro, entendendo o acontecimento como um progresso na pauta feminina, quando muitas vezes estes mesmos setores mobilizam seus interesses “denunciando” um abismo entre poder representativo e sociedade civil, promovendo uma harmonia simbólica onde os laços sociais são violentamente rompidos e desgastados. Lembrei também que sou cúmplice da opressão feminina, que sou um agente opressor independentemente de minha consciência sobre a opressão perpetrada, e que a única forma de não se deixar levar pelo cinismo e nem pela apologética vitimizadora é entender que o olhar opressor fálico, compartilhado por ambos os gêneros, só pode ser rompido por aquele que o apreende sem seus pressupostos estruturais, e que, portanto, vive as coordenadas da opressão guardando algo de inexprimível. Apenas consciente da existência do inexprimível posso dizer que escolho um lado na luta. Só há sentido em lutar por outro mundo se neste outro mundo o inexprimível da subjetividade feminina tiver voz. Assim, percebo que sob esta vitória carnavalesca sobre a luta das mulheres, há uma massa desconforme que ganha volume conforme é ignorada. Acho que nunca admirei tanto as feministas como admiro hoje. Espero sinceramente que a vitória seja delas.

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