Fiquei feliz de perceber que repercutiu minimamente a coluna dessa semana do Vladimir Safatle, na F(a)olha de S. Paulo, publicada no último dia 15. O texto saiu intitulado “De frente para o abismo”. Ultimamente os textos dele me desciam com impressões ambivalentes, oscilando no reconhecimento da competência analítica e lucidez no encadeamento dos argumentos organizados num espaço tão pequeno, ainda que muito bem aproveitado, mas acho que errava a mão ao apreender o télos de certas questões (por exemplo, sobre a relação da esquerda com os prisioneiros políticos cubanos... acho que acerta em cheio ao avaliar como sendo vergonhoso o desamparo de certos setores ao tratar – quando tratam – desta questão, surgindo como tabu para muitos de nós. Mas não sei se concordo que se trata de um ardil suscitado pelas nossas acusações contra a direita no que diz respeito à violação de direitos humanos em Guantánamo [José Arbex Jr. escreveu uma reflexão muito boa sobre isso na edição de abril de 2010 na Caros Amigos], como ele afirma no texto de duas semanas atrás).
Para quem não acompanha a coluna, na terça passada ele discorreu sobre o fatídico dado conjuntural da política francesa de que, caso as eleições presidenciais ocorressem hoje, Marinne Le Pen ganharia com 24% de vantagem. Para quem não se espanta com o nome “Le Pen” de volta à cena política francesa, trata-se da filha de Jean-Marie Le Pen, aquele que fundou o Front Nacional e tinha como uma das plataformas eleitorais o “deslocamento” de imigrantes (usando, ocasinalmente, o termo genérico “não-franceses”) para o sul do país, diretriz formulada com discursos inflamados do mais retrógrado nacionalismo tradicionalista. E, caso ainda não lembrem muito bem da figura que descrevo, ficou em segundo lugar nas eleições de 2002, angariando mais votos que todos os candidatos de esquerda, perdendo apenas para Jacques Chirac. Estamos falando do racismo e xenofobia francos e abertos ampliando espaços de poder numa das principais nações da Europa.
Safatle (novamente me direciono aos que não leram a coluna, e recomendo fortemente que leiam) identifica três questões principais que explicam esta adesão aos ideais do Front Nacional, e resumo os dois primeiros na herança histórica da política francesa, dividida entre o esclarecimento cultivado na herança universalista e igualitária da revolução francesa e o obscurantismo nacionalista que relaciona um tradicionalismo raquítico como amplo valor político, e o esforço desastroso de Sarkozy em transformar questões sociais em embates culturais, fomentando perseguições contra minorias e paranoia nacionalista (basta lembrar o caso dos véus das mulheres muçulmanas e da expulsão de ciganos do país... polêmicas suscitadas há apenas alguns meses, por mais que as ações soem medievais). A terceira, em minha o opinião a que mais nos diz respeito, é o deslocamento da esquerda popular e operária para a extrema direita.
Este último não se trata de um fenômeno deflagrado pela particularidade histórica e cultural de uma nação específica (e Safatle sabe disso, como muito bem demonstrou em outros textos publicados no mesmo espaço). Em outubro do ano passado ressoou não mais do que deveria a aceitabilidade de políticas anti-imigrantes na cena mainstream da política alemã, fomentada com os inflamados discursos da já empossada chanceler Angela Merkel para a juventude da União Democrática Cristã, dizendo, com todas as letras, que o multiculturalismo social-democrata falhou, e que medidas severas devem ser tomadas, pois a nação alemã não poderá triunfar carregando esse peso de farrapos. E o que dizer da muito mal analisada coalizão Tory-Lib no parlamento inglês, considerando que uma das plataformas eleitorais do Conservative Party é a promoção do jeito economist de ser, reelaborando todas as medidas de contenção e restrições orçamentárias anti-labour movement, e pregando a total subserviência às idiossincrasias jurídicas promovidas pela guerra ao terror? Sem falar em Polônia, Dinamarca e Suíça, onde as excrescências colocadas pelo conservadorismo francês parecem um jogo de amarelinha...
Acho que Safatle acerta no diagnóstico, assim como Zizek, que faz uma análise parecida em seu perigosíssimo, mas fascinante, Em defesa das causas perdidas: No que diz respeito ao penar das relações conjunturais da política mainstream, nós, da esquerda, só temos nós mesmos para culpar, pois não soubemos responder à altura questões cruciais que apenas nós saberíamos responder. Justo no momento em que todos perdem a fé nas prospecções do capitalismo liberal-democrático dinâmico e globalizado, a extrema direita se apropria das questões de classe, invertendo a fundamentação política e social de suas formas de manifestação. O crescimento da extrema direita não denota um emburrecimento massificado, mas uma atrofia da esquerda, que não reconhece o seu próprio lugar. Não devemos tomar a postura de embasbacamento, nos perguntando horrorizados “ó, céus, como isso pôde acontecer?”, mas diretamente nos perguntar “Como ativamos esta correlação por nosso enfraquecimento?”. Assim também se explica a amalucada política americana, que quanto mais angaria profundos sintomas da recessão, mais cresce seu Tea Party.
E aqui no Brasil? Bom, basta lembrar que o governador do “Estado mais dinâmico e expressivo economicamente” é um comprovado membro da Opus Dei... (obrigado, WikiLeaks!) Entre outros fenômenos que precisam ser decifrados (e apenas nós podemos decifrá-los, que fique claro) estão as formas de manifestação da dinâmica social das nossas periferias, que a cada dia mudam suas fronteiras na gestão de um exército de cidadãos monetários sem dinheiro (Kurz) geridos financeiramente, e que pendem nas mais diversas formas de engajamento também ainda por serem decifradas, como o expressivo crescimento de Igrejas evangélicas, as formas de relações de conduta sobre o “dentro” e o “fora” da periferia, etc, sem falar nas versões brasileiras da “culturalização” das questões sociais, travestidas em políticas contra o tráfico, políticas de segurança pública (por aqui não é necessário esconder a natureza “social” da questão para que ela seja mistificada... uma tendência que está começando a ser global também...), e a adesão de partidos conservadores a prescrições petistas. Espero que lhes soe como uma banalidade quando escrevo que há um acordo tácito nas formas de convívio de diversos setores da esquerda e direita com o petismo... a partir do momento que o petismo fagocita a extrema-direita, o que temos diante de nós? Jabberwocki? Kraken?
No mais, hoje, olhando o escaninho do elevador de serviço do meu prédio, me deparo com uma folha de avisos que tinha no cabeçalho a insígnia da Polícia Militar do Estado de São Paulo (?!?!?!). Nela há instruções para os condôminos sobre como praticar uma conduta de convívio segura. Entre elas está, com muito menos eufemismos do que se poderia esperar, o aviso de que devemos desconfiar de nossos porteiros. Como se dissessem “classe média, fiquem em alerta! O cara é pobre e, portanto, vive com o inimigo! Fiquem espertos!”. Fico pensando se tem gente que pensa “Que bom, nossos impostos servindo para alguma coisa”.