VESTIDO AZUL
domingo, março 13, 2011
  o que há de tão natural nas tragédias naturais? - pequena reflexão sobre Haiti e Japão

As imagens são estarrecedoras. O número de mortos permanece incalculável. Mesmo diante da clara situação calamitosa, não se sabe a extensão dos estragos e até que ponto afetará a vida nacional de um país com tão pequeno território. Refiro-me, é claro, ao terremoto ocorrido no dia 12 de janeiro de 2010 no Haiti.

Diante da cobertura massiva sobre os recentes acontecimentos no nordeste do Japão, é quase inevitável recordar a forma como os estragos sobre Porto Príncipe foram apreendidos. Não sei se soa um pouco aleatória a comparação, mas acredito que certos nuances sobre como a “calamidade japonesa” até o momento vem sendo reportada nos revelam uma certa familiaridade com outros momentos de “tragédias naturais”, que nos embasbacam e repentinamente criam redes de solidariedade e manifestações de fraternidade conscienciosa. Não sei se é cedo demais para escrever este texto. Trata-se de uma reflexão ainda inconclusa.

Entre as óbvias diferenças entre as coberturas sobre as tragédias haitiana e japonesa está, em relação aos fatos que encontrávamos nos jornais e telejornais sobre Porto Príncipe, a completa ausência de uma apuração “local”, que refletisse impressões efetivas sobre os estragos retratados. O que se ouvia eram relatos compilados e organizados por agências de informações e dados esparsos sobre este ou aquele edifício (no caso, o palácio presidencial ficou em destaque) ter colapsado. Não se sabia o número de mortos, não se tinha a menor idéia da real extensão dos danos. Apenas seis dias depois descobrimos que o número de mortos poderia ultrapassar a marca dos cem mil (lembro que a contagem nunca foi absoluta, e a apuração ultrapassou a marca dos 200 mil mortos). No Japão, logo no primeiro dia fomos bombardeados por diversas imagens de ondas devastando cidades inteiras, arrastando barcos, caminhões e casas como se fossem folhas de papel levadas por água do bueiro de rua. No segundo dia já tínhamos uma estimativa dos danos e apurações de possíveis acidentes nucleares. Estamos no terceiro dia desde o ocorrido e já temos detalhes sobre procedimentos externos de assistência para a reconstrução dos estragos e de intervenção do escritório de ajuda humanitária das nações unidas.

Tenho plena ciência de que é perigosíssima uma comparação dessas sem levar em conta inúmeros fatores internos e externos de cada país, e que a pequena relação que tracei poderia ser reapropriada e interpretada de inúmeras formas diferentes. Mas não estou comparando qual tragédia foi maior ou menor, muito menos tentando relacionar escalas de cobertura midiática. O que me intriga é a forma como naturalmente se manifesta a compreensão do convívio social entre os habitantes dos respectivos territórios devastados e como, a partir disso, se traça a solidariedade com estes habitantes. Pois, se lembrarmos bem, a imediata apreensão imposta ao nosso imaginário sobre a tragédia haitiana, por não termos o suporte de imagens e vídeos para serem reproduzidos ininterruptamente por qualquer veículo (Porto Príncipe ficou por um bom tempo incomunicável para qualquer pessoa comum que tentasse alcançar algum habitante dentro de seu território), foram traçadas narrativas sobre o horror e o caos a partir de narrativas de terceiros. Tratou-se de uma condição “pré-hobbesiana”, segundo um sociólogo x que atendeu a este canto de sereia. No caso do Japão, me deparo com inúmeros relatos como os abaixo:Neles ressalta-se a necessidade de entendermos eventos como o do Japão como momentos para se valorizar o que temos, nossos familiares, nossos pertences, nossas relações humanas, etc., pois então percebemos como são frágeis e preciosos, etc. Não afirmo que não houve manifestações de solidariedade correlatas em relação ao terremoto haitiano, mas eles eram filtrados a partir desta compreensão de uma condição em que pessoas teriam se tornado animais, e de completo caos dentro das relações sociais. Este discurso foi também apropriado pelas forças da Minustah, nossos soldados em treinamento para ocupar nossas favelas, que se mantiveram aquartelados nos primeiros dias antes das primeiras noticias sobre terem provido assistência à população haitiana. Bom, quem pôde ler o relato de Omar Ribeiro Thomaz, que sobreviveu ao terremoto e viu que não existiu caos ou “condição pré-hobbesiana”, não sentirá grande dificuldade em conectar os pontos. A ocupação militar, a “assistência” externa se revelou no terremoto um procedimento que atende pautas internas dos países que enviam seus representantes, mas não atende os interesses do Haiti, e assim se procede há décadas, com golpes de estado encomendados e sanções contra um país já miserável. A calamidade haitiana não começou com um terremoto. Começou com a retaliação por terem sido o único país da América Latina onde uma revolução de escravos deu certo. E pagam por isso até hoje.

Minha impressão é a de que essa solidariedade imediata, acrítica, que aceita qualquer impressão distorcida sobre a dinâmica social específica de uma população serve muito mais para nos sentirmos narcisicamente contemplados por nos colocarmos como quem se importa. Nossa tristeza pela tragédia acaba servindo muito mais para nós mesmos que para aqueles que de fato sofreram e sofrem. E nos desviamos do fato de que nem todas as tragédias naturais são tão naturais assim. Que o digam os milhares de desabrigados pelas chuvas de São Paulo, Rio, etc.

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