VESTIDO AZUL
sábado, março 19, 2011
  sobre a última quinta feira, dia 17

Enquanto os manifestantes adentravam a estação de metrô Anhangabaú, os policiais militares, que seguiam o ato desde seu ponto de saída, na frente do Teatro Municipal, se alinhavam e escutavam as instruções do sargento (não entendo muito de hierarquia da PM, quais postos cada policial ocupa, mas claramente se tratava de um homem num posto superior dirigindo-se aos seus subalternos) em frente à estação de metrô, na saída próxima à Praça Ramos. “É só pra dar linha, não é pra bater em ninguém, entenderam?”, dizia o oficial de boné cinza e de cabelos e bigode grisalhos, claramente muito mais velho que seus colegas.

Não escondo que apóio a manifestação e que considero esta, a redução da passagem, não apenas uma reivindicação legítima, mas também vejo neste movimento um dos únicos sopros de manifestação pública real na vida política paulistana que reivindica interação efetiva com uma administração pública absolutamente impermeável a qualquer forma de atuação direta da população a qual se diz servir e representar. Quem acompanha minimamente o marasmo da política oficialesca paulistana sabe quão valiosos e cruciais são movimentos como este, que nascem com muito suor e perseverança de grandes militantes, os quais merecem de nós nada além do mais alto respeito e admiração. Destarte, não é difícil compreender que se trata de um movimento imbuído de contradições e dificuldades internas que, em verdade, permeiam toda a “vida publica” desta cidade, absolutamente esvaziada de espaços de interação política efetiva, tão afeita a tratar suas formas de contenção social como políticas de preservação da ordem pública, e a inércia administrativa como parâmetro de normalidade da atividade institucional. Não é difícil, portanto, pintar manifestações públicas, atos de desobediência civil e formas afirmativas de manifestação de posicionamentos políticos como atos criminosos de multidões amorfas que nada sabem sobre a "boa conduta civil" (espero também que isto que acabei de escrever lhes soe como uma enorme banalidade).

Não é no movimento, porém, que gostaria de me deter agora. Gostaria de atentar para outra coisa que aconteceu na quinta, e não sei se passou despercebida, ou se foi notada, mas é tão comum de se ver em casos como o ocorrido que simplesmente tonou-se um detalhe de paisagem, um mero contraste de luz e sombra no cotidiano.

Todos puderam ver repetidas vezes a pancadaria na qual se desdobrou o ato pela redução do aumento da passagem de ônibus, ocorrido na última quinta, dia 17. Diante das câmeras das grandes emissoras, era muito simples retratar o que estava a ocorrer: Há dois lados a serem considerados, os manifestantes e as figuras de autoridade que deveriam zelar pela segurança e ordem pública. Resta saber, então, quem começou. Afinal, quem estava com a razão e quem agiu irracionalmente? Afinal, os manifestantes estavam exercendo seus direitos de livre-manifestação, e a polícia e os seguranças do metrô apenas cumpriram com sua obrigação de conter os excessos dos primeiros (obviamente estou assumindo um grau absurdamente brando, quase irreal, de interpretação do caso, e que inevitavelmente repetiria os mesmos argumentos de senso-comum sobre qualquer tipo de manifestação que termina como terminou). Assim ficamos na hipóstase que nos obriga pressupor a possibilidade de se quantificar e mensurar graus prescritivos que determinam níveis de transgressões e racionalizam formas de se compreender o confronto entre as duas partes.

Dito tudo isso, me volto ao primeiro parágrafo deste texto. Estava do lado de fora quando a polícia começou a alinhar-se na frente dos portões do metrô. Quem viu os vídeos, notou que os manifestantes estavam encurralados dos dois lados: quando chegaram nas catracas, foram violentamente interrompidos pelos seguranças do metrô, e, do outro lado, nos portões de entrada, a PM cercou as passagens. Antes de terem assumido este posto, pude ouvir e ver claramente um oficial superior instruindo seus subalternos a não bater em ninguém. Eram mais de vinte policiais reunidos. Os mais próximos deste superior o seguiram já colocando suas mãos sobre sprays de pimenta. Os últimos, e aqui coloco o que mais me chamou atenção¸ olhavam-se com desdém e sacavam os cassetes segurando pela ponta, já os erguendo em posição de abate.

O que senti ao notar todos estes elementos foi total pavor. Não pude ver claramente as ações dos funcionários de metrô, que foram, em verdade, talvez mais brutais que a PM. Distribuíram pancadas aleatoriamente e perseguiram manifestantes fora da estação. Mas meu pavor não era pela pancadaria (apenas). Foi pelo seguinte: Logo no primeiro momento de ação da PM, não havia mais hierarquia. A ordem oficial já não fazia efeito algum sobre os oficiais no mesmo segundo em que foi dada. Foram para o confronto prontos para massacrar, independente do que sua condição oficial prescrevia. Era absolutamente impossível prever como se deveria agir.

Já havia me deparado com narrativas de cenas como essa, em que ações violentas sobre militantes ocorreram repentinamente, e o assustador não era ver a cena em si, mas sim, segundo os autores dos relatos, ver os altos cargos da hierarquia militar sem saber o que fazer, sem nenhum controle sobre a ação repressora. Há um ímpeto para o massacre por trás destas ações. Na quinta, a cena que pude testemunhar consistia na ação de homens fardados atuando muito mais como multidão amorfa, absolutamente sem linha, do que aquilo que a grande mídia gostaria de caracterizar como sendo a ação dos manifestantes. Há um consenso soberano, muito caracteristicamente brasileiro, que relaciona imediatamente o estabelecimento da ordem pública com massacres, com violência ampla e irrestrita.

Penso no grau de subversão caracterizada pela reivindicação da redução da passagem dos transportes públicos, uma pauta que para muitos soaria “institucional”, pouco politizadora, que facilmente se perderia nos meandros fossilizados das negociações oficiais. Mesmo assim, esta pauta conseguiu diretamente inquirir uma gestão municipal até então completamente intransigente e onipotente. Sobre a pergunta, qual lado estava certo na quinta-feira: A policia ou os manifestantes? Fico do lado que não zela pela pulsão do massacre. Acho pouco útil para as conquistas do movimento as ações de três ou quatro, de arrebentar “bens públicos” como forma de manifestação (simplesmente por sempre acontecer o que acontece: Usam estas ações isoladas para criminalizar e justificar ainda maior repressão contra todo o ato). Mas é absurda a tentativa de apreender até que ponto espancamentos aleatórios são justificáveis por parte de nossas instâncias soberanas. Fico do lado dos manifestantes. De todos eles.

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Comentários:
Interessante relato. Me lembro de uma fala do rapper Mos Def num documentário sobre o Mumia Abu Jamal, na qual ele conta como foi reprimido pela polícia por desfilar em um carro de som mesmo tendo todas as autorizações burocráticas para faze-lo. Aí ele coloca que os policiais o reprimiam nao pelo conteudo do que dizia, nao por ele ser famoso, nao pelo seu potencial revolucionário ou o que seja, mas por simples REFLEXO frente a alguém que se levanta, alguem que contesta. Acho que no caso aqui nao é muito diferente, a repressão vem por reflexo, e como vc muito bem mostrou a brutalidade também, mesmo quando há advertências superiores para que isso nao aconteça (suponho que obviamente calculando onus politico-midiático de uma ofensiva tao injustificada como essa).

Diante disso, nao é fácil saber onde enfiar tanta raiva- a digna raiva. Quem sabe ela também nao explode num reflexo contra o poder e a opressão? Na falta disso, por enquanto podia ir explodindo contra esses animais fardados que já seria justo...
 
Po, retiro o "animais", os animais nao merecem o tratamento que esses daí merecem...
 
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