“[...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo novas relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo.”
“A sobrecarga de presságios desencadeada por uma tal conjunção combina bem com a psicologia de uma nação falhada que encontra razões para envergonhar-se de um dia ter sido chamada de país do futuro”.
Caetano Veloso, sobre os relógios de 500 anos do Brasil no ano 2000, em Verdade tropical
“
This is not a system, it’s a country!”
Detetive John Mclane, interpretado por Bruce Willis em Duro de Matar 4.0
Fiquei devendo um post para responder a comentários muito decorosos e provocadores feitos já há mais de um mês. Peço que desculpem o tanto de espera, pois andei ocupado e o mundo esteve girando de tal forma que foi meio difícil de acompanhar. O que segue não é uma tentativa de prover soluções ou de encontrar o elo perdido sobre as questões colocadas. Está mais para uma recapitulação minha que talvez fique mais rica se compartilhada com meus colegas.
Em sua tentativa de decifrar o espírito burguês brasileiro, Florestan Fernandes parte da concepção weberiana de que o “espírito capitalista” antecede a formação do capitalismo, mas sob o escopo pouco ortodoxo de que o “espírito capitalista” se altera conforme sua organização e adequação ao seu lugar determinado no sistema. A consolidação da institucionalidade liberal deu-se, portanto, como um empreendimento portentoso de uma unidade moral dada, mas que precisou remodelar suas arestas para suportar os troncos e barrancos desconhecidos. A "utopia" e a "ideologia" liberal tiveram de ater-se a formas preexistentes de organização econômico-social que nada tinham a ver com o conceito dado. O que se pôde chamar de “sociedade civil”, postulada pela consolidação de um Estado nacional independente, foi uma extensão necessária dos antigos estamentos senhoriais. A democracia liberal brasileira nasce, portanto, sob a condição da (lembrando do estudo de Maria Sylvia de Carvalho Franco) existência de “homens livres” numa dinâmica social escravocrata. A inadequação e monstruosidade conceitual são reconhecidas desde seu nascimento, percebidas por todo o espírito conservador que lutou para arrefecer e conciliar as partes não integradas do penhor desta igualdade. O título do célebre ensaio de Roberto Schwarz, como ele mesmo se viu obrigado a alertar, não foi dado para soar como uma máxima reveladora ou axiomática sobre o espectro ideológico brasileiro. Em verdade, é o exato oposto. “As idéias fora do lugar” é um título irônico, uma galhofa sobre o “pensamento lúcido” brasileiro, que constatava o fato de as idéias estarem fora do lugar desde os primeiros passos da chamada “integração nacional”, geralmente pela voz do extremo conservadorismo, entendendo as utopias liberais como impropriedades justamente pela existência da escravidão. Joaquim Nabuco, a figura histórica mais ambígua e, sem dúvida, a personalidade emblemática do período histórico que viveu, muito acerta ao chamar as forças conciliadoras de “reacionárias” (por isto, como Luís Felipe de Alencastro muito bem recordou, convido os não-marxistas que, porventura, estão a ler este texto, a adotarem o termo, pois não se trata de uso exclusivo para vermelhos...). Havendo uma ordem social dividida por latifundiários, escravos e “homens livres”, apenas os dois primeiros encontravam respaldo material de adequação dentro da dinâmica social. O primeiro e o segundo, por razões óbvias. O terceiro, como Shwarz salienta, dependente de favores, interage sob a ideologia burguesa concebendo-a como “ornato e marca de fidalguia”, operando passivamente com as elites, compartilhando de suas aspirações e sonhos de auto-realização. A ideologia burguesa, que tinha sua coerência traduzida materialmente por uma sociedade industrial, ganhava respaldo nacional pela experiência (atualizadíssima, diga-se de passagem) da dualidade desintegrada como formação cognitiva que, como um sistema de oposições que tinha sua unidade manifesta conforme a necessidade imediata, tinha-se como dado empírico tanto o atraso do desajuste colonial, como a lepidez ideológica de uma elite em contato direto com o sistema capitalista internacional e os imperativos de reprodução do capital.
Desta experiência ideológica dual nasce o que Antônio Candido chamou de “consciência amena do atraso”. Eis as idéias fora do lugar como preceito necessário para sustentar as inadequações filosóficas e econômico-sociais que compõem a normalidade do Estado nacional tupiniquim. É necessário que se acredite que este é um país de futuro. A busca por uma unidade homogênea que conciliasse os pólos opostos sem que anulasse as disparidades que compunham fator orgânico da atualização brasileira na ordem econômica global. Foi Caio Prado Jr. quem melhor compreendeu que no Brasil, a penetração do capitalismo foi resultante natural da evolução de um sistema econômico em que o país já estava enquadrado. Brasil colônia de ontem era, desta forma, justificadamente, Brasil nação de amanhã. Os saltos de integração sempre foram historicamente pautados pela capacidade de dinamizar o moderno pelo arcaico. Assim, Chico de Oliveira decifrou a mistificação cepalina, entendendo a formação da sustentabilidade do preço de custo da força de trabalho numa dinâmica social desprovida de estrutura mínima de acumulação primitiva, tanto mais para atender imperativos de reprodução de capital industrial, pelo trabalho informal, ou seja, tendo a miséria adensada nas periferias urbanas como atividade social produtiva na contabilidade de um setor terciário não consolidado em relação à industrialização, que ainda engatinhava em termos estruturais, e que era compensada pela internacionalização da economia interna, por trustes ou inversões financeiras. O mito sobre os interesses integradores nacionalistas da burguesia brasileira foi desmentido por FHC, que
O que se vê em absolutamente todas as camadas e instâncias da “unidade” brasileira é uma capacidade monstruosa de comportar dimensões temporais e determinantes existenciais opostos na mesma dinâmica de ordenamento da realidade. Uma unidade interna cujo centro de gravitação ontológico é uma antítese externa, e depende que assim permaneça para que a organização do mundo tenha seu sentido absoluto intocado, independente da não existência dos pressupostos que deveriam lhe dar substancia (em outros termos, José Antônio Pasta Jr. brilhantemente identificou esta relação chamando-a de idéia fixa).
O resultado final é um Estado de direito galgado por uma unidade interna projetada pelos pressupostos modernos mais sofisticados, mas sob a necessária manutenção de instâncias soberanas de exceção. Assim é a polícia, que, nas periferias, literalmente decide de forma sumária quais cidadãos vivem ou morrem em relações imediatas, a autonomia do Banco Central, que com “cartas circulares” ultrapassa leis federais, e uma dinâmica de funcionamento dos três poderes que simplesmente empaca se não lança Medidas Provisórias
Levando estas questões em consideração, entende-se, por exemplo, porque se torna coerente a idéia da escravidão como continuidade natural da cultura africana e concessão por parte dos próprios escravizados (argumento de Demóstenes Torres para justificar suas colocações sobre cotas raciais), já que a competência administrativa se descola do entendimento da dinâmica social escravocrata para compreender a inserção da forma trabalho nos primeiros passos do capitalismo colonial. Ou dos chiliques e escândalos sobre o PNDH3, que, ao apontar a necessidade de rever contradições herdadas da ditadura e, por conseqüência, algumas das formulações pétreas do nosso estado democrático, toma forma de uma “ameaça totalitária”, já que o estado de normalidade depende da gestão destas contradições, e não de sua superação. Assim também deve ser compreendida a presença militar brasileira no Haiti, que, além de ser braço auxiliar num experimento para a formação parasita de capital primitivo, é também (seguindo a intuição de Paulo Arantes sobre a questão) um laboratório de atividades de forças armadas para a preservação de uma dinâmica social interna.
Acho que aqui entra tudo. Conflitos agrários e urbanos, ampliação da estrutura e da população carcerária (e aqui inclui o terrivelmente complexo sistema de relações sociais, que funciona mais como extensão de divisa social do que de reclusão, como se deseja acreditar), as questões de gênero, da diplomacia (que também é muito mais complexa do que aparenta – considerando que a pureza da unidade democrática brasileira, pautada pela exceção, é obrigada a pautar-se pelo estado de exceção do que David Harvey chamou de novo imperialismo, manifesto nas relações com o Irã e, mais recentemente, na Palestina)...
Como esta é apenas uma recapitulação em forma de convite à reflexão, paro por aqui. Não é possível tirar conclusões maiores de fatos específicos sem análise detalhada, e infelizmente não tenho competência para isso. Acho que a única coisa que posso fazer é alertar que, ao se debruçarem sobre estas questões, se conseguirem encontrar algo que passe conforto e segurança sobre o futuro, peço que parem, reflitam, e reconsiderem. O que se vê é uma sociedade nova a se plasmar. Ainda é muito cedo para dizer o que será, mas qualquer atribuição mais leve que “abominável” para caracterizá-la será simplesmente mais um esforço voltado para a auto-enganação.
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“QUERÔ – (Interrompendo Leda) Por que, mãe, por que... tu me pôs no mundo? Vê o que tu fez comigo. Ah, mãe, eu nunca fui o mais forte, nem o mais bonito, nem o mas sabido. Só me trato de favor. Como de esmola. Durmo de esmola. E isso não presta. Isso deixa a gente ruim.
LEDA – Eu sei, eu sei, meu nenê... Me perdoa... Eu queria tanto, tanto, ter alguém como você... Alguém que fosse por mim... Mas, meu filho, eu não tive a força pra esperar tu crescer pra me valer... pra... Oh, meu filhinho... Foi tanta sacanagem que me fizeram... (chorosa) Não deu pra esperar. Era duro, meu filho. Todas as noites eles vinham em bando, como os porcos andam na floresta, e arrotavam suas vantagens, bebiam seus triunfos, depois me arrastavam pra cama, arrancavam meu vestido, mordiam meu corpo, cuspiam suas aflições no meu ventre, babavam como porcos que eram. Depois atiravam dinheiro na minha cara, como se fosse gorjeta, como se estivessem gratificando por favor alguém que lhes deu gozo. E riam, riam, meu filho, Riam de mim. Que ficava ali jogada, despida, sem forças para me vestir, sem forças pra sonhar... com o amor e seus prazeres... Eu me sentia um lixo, um lixo, meu filho. A última das mulheres, às vezes nem mulher me sentia... (Chora) Parecia que eu ia desfalecer... Então... eu pensava em ti... em ter você... te abrigar no meu ventre... te parir... me sentir mulher... mãe... pura... mãe... ter um filho meu... meu precioso bem... E era nessa esperança que eu me nutria, me erguia e ia trabalhar... Aí, senti que tu estava dentro de mim... e gozava... só antevendo tua chegada... Mas eles, meu filho, vieram com fúria, aos bandos, como os porcos andam na floresta... E não respeitaram... rasgaram minhas roupas, me arrastaram pra cama, morderam meu corpo, me cuspiram suas aflições, jogaram o dinheiro nojento na minha cara e me empurraram, me empurraram para a garrafa de querosene e me empurraram e me forçaram a beber aquela bebida amarga, aquele fel, que me queimou inteira. E eu rolava em brasa viva e eles riam, riam, riam... e eu te chamava, te chamava... (Pausa) Por culpa deles eu não pude te esperar... (Chora) Perdão, meu filho.”
Querô, uma reportagem maldita – de Plínio Marcos (recentemente encenada pelo Folias)
“Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós, que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de crianças; depois que saiu do colégio, é certo que não estabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor; outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a mão pelos meus cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis; mas eu retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim. Apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia, alguma frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de Pitanga.”
Dom Casmurro – de Machado de Assis
“MUNDO – (Caminha até Dalva) Levanta, Dalva! Levanta, porque, como dizia minha Aurora, sujeira que água não leva, fogo é que dá jeito. Vamos, Dalva, levanta! Pela Vera, pela Noêmia, por São Gonçalo, levanta mulher! Levanta que o povo não pode com o silêncio! O silêncio obriga a gente a ouvir as batidas do coração. Por isso é tão cheio de alma o toque do silêncio. E é esse mesmo coração que se desfaz em melodia pra ficar mais leve, e caber inteiro no peito de quem o tem. (começa a batucar)
DALVA – (acorda e recupera as suas forças) Que avenida tão limpa é essa que vai ser erguida sobre um chão de sangue? Pois eu não tive medo, porque é também sangrando que se vira mulher, e quem veio nesse mundo pra sangrar não pode temer a dor. Chuta a porta, escarra no chão, deita abaixo telhado e parede, (bate no peito) mas essa casa ninguém há de nos tomar. Como é que é seu Mundo? O povo não pode com o silêncio, não é? Quero ver judiar desse pandeiro, saci! Cadê minha Amarelinha? Tem que dizer pra ela que eu ainda não acabei minha oferenda! Cadê Menina João, cadê Manuel? Tá na hora de trocar o vinho português pela cachaça velha, galego! Bora levar essa festa até o fim, porque o povo da lira não teme o enviado do Tinhoso! Cadê Flausina, Helena? É por vocês também que eu danço! Cadê nosso pai Chico pra nos abençoar? (durante seus chamados o cortiço renasce, de todas as portas os personagens surgem, preenchendo o espaço com sons e ações) Carne de cama, sim senhor. Mulher da vida ainda mais porque da morte não quero ser. É pelas saias de Maria Padilha e toda sua quadrilha. É pelas saias de Maria da Calha e toda a sua canalha!
MUNDO – É pelas saia da Aurora, da Vera e da Noêmia!
NOIVA AMARELA – (festeja despetalando seu buquê até desaparecer dentro de um dos cômodos)
DALVA – É na alegria e na tristeza. Na pobreza e na doença. Até que a morte nos separe. É por minhas irmãs, Deus me valha, é a elas que quero ofertar a sétima saia (tira sua própria saia e a segura como uma bandeira, todos os sons param). Ofereço essa saia às mulheres que já apanharam, mas que aprenderam a bater. Àquelas que entenderam que o corpo é a nossa casa e que a gente limpa do nosso jeito e só abre a porta pra quem a gente quer. Ofereço a todas as mulheres, minhas irmãs, que morreram, mas me ensinaram a viver. (desmaia)”
Hygiene – Grupo XIX de Teatro
“A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procriação, aparece desde já como uma relação dupla – de um lado, como relação natural, de outro como relação social – social no sentido de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem as condições, o modo e a finalidade. Segue-se daí que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de cooperação ou uma determinada fase social – modo de cooperação que é, ele próprio, uma “força produtiva” –, que a soma das forças produtivas acessíveis ao homem condiciona o estado social e que, portanto, a “história da humanidade” deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas.”
(sobre o começo da consciência de que o homem vive definitivamente numa sociedade) “Esse começo é algo tão animal quanto a própria vida social nessa fase; é uma mera consciência gregária, e o homem se diferencia do carneiro, aqui, somente pelo fato de que, no homem, sua consciência toma o lugar do instinto ou de que o instinto é um instinto consciente. Essa consciência de carneiro ou consciência tribal obtém seu desenvolvimento e seu aperfeiçoamento ulteriores por meio da produtividade aumentada, do incremento das necessidades e do aumento da população, que é a base dos dois primeiros. Com isso, desenvolve-se a divisão do trabalho, que originalmente nada mais era do que a divisão do trabalho no ato sexual e, em seguida, divisão do trabalho que, em conseqüência de disposições naturais (por exemplo, a força corporal), necessidades, casualidades, etc. etc., desenvolve-se por si própria, ou “naturalmente”.”
A Ideologia Alemã – de Karl Marx e Frederich Engels
“No amor, o gozo estava associado à divinização da pessoa que o concedia, ele era a paixão propriamente humana. Mas acaba por ser revogado como um juízo de valor condicionado pelo sexo. Na adoração exaltada do amante, assim como na admiração irrestrita que lhe devia a amada, o que se repetia sempre era a transfigura da efetiva servidão da mulher. Com base no reconhecimento da servidão, os sexos voltavam sempre a se reconciliar: a mulher precisa assumir livremente a derrota, o homem conceder-lhe a vitória. O cristianismo transfigurou no casamento, como união dos corações, a hierarquia dos sexos e o jugo imposto ao caráter feminino pela ordenação masculina da propriedade, aplacando assim a lembrança de um passado mais feliz desfrutado pelo sexo feminino na era pré-patriarcal.”
“é na violência, por mais que ela se esconda sob os véus da legalidade, que repousa afinal a hierarquia social. A dominação da natureza se reproduz no interior da humanidade. A civilização cristã – que permitiu que a idéia de proteger os fisicamente mais fracos revertesse em proveito da exploração do servo forte – jamais conseguiu conquistar inteiramente os corações dos povos convertidos. O princípio do amor foi excessivamente desmentido pelo entendimento agudo e pelas armas ainda mais aguçados dos senhores cristãos, até que o luteranismo eliminou a antítese do Estado e da doutrina, fazendo da espada e do açoite a quintessência do evangelho. Ele identificou diretamente a liberdade espiritual à afirmação da opressão real. Mas a mulher traz o estigma da fraqueza e por causa dessa fraqueza está em minoria, mesmo quando numericamente é superior ao homem. Como no caso dos autóctones subjugados nas primeiras formações estatais, assim como no caso dos indígenas nas colônias, atrasados relativamente aos conquistadores em termos de organização e armas, bem como no caso dos judeus entre os arianos, o desamparo da mulher é a justificação legal de sua opressão.”
“O sentimento que se ajusta à prática da opressão é o desprezo, não a veneração, e, nos séculos cristãos, o amor ao próximo dissimulou sempre o ódio proibido e obsessivo pelo objeto que não cessava de evocar a inutilidade desse esforço: a mulher. Ela pagou o culto da madona com a caça às bruxas, que não foi senão uma vingança exercida sobre a imagem da profetisa da era pré-cristã, que punha secretamente em questão a ordem sagrada da dominação patriarcal. A mulher excita a fúria selvagem do homem semiconvertido, obrigado a honrá-la, assim como o fraco em geral suscita a inimizade mortal do homem forte superficialmente civilizado e obrigado a poupá-lo.”
Dialética do Esclarecimento – Excurso II – Juliette ou Esclarecimento e Moral – T. W. Adorno e M. Horkheimer
“Hoje tudo mudou. A idéia de integridade política que prevaleceu em tantos grupos e projetos evaporou, assim como a possibilidade de conceitualizar autonomia como unidade básica, quase orgânica. A luta feminina tornou-se difusa e muito mais frustrante por falta de uma forte contestação do homem. Isso não significa que a dominação masculina já não exista para servir aos interesses do capitalismo. Nossa sociedade ainda é regida pelo homem, mas suas formas de controle são menos identificáveis. Em muitas situações do cotidiano, o patriarcado é parte integrante da cultura de consumo e da gratificação da mercadoria. (...) O corpo feminino ainda é uma área de contestação. Embora os termos em que se dá a luta tenham se deslocado desde os anos 60, muitas mulheres continuam a situar seu desejo básico de liberação na expressão corporal da individualidade.” É preciso entender como a dominação masculina incide na articulação do corpo da mulher como expressão da individualidade. (paráfrase)
Cotidiano: Para Começo de Conversa – de Susan Willis
“Deveríamos desconfiar especialmente de uma obsessão com o assédio sexual de mulheres quando é expressa por homens: depois de sondar a superfície “pró-feminista” politicamente correta, mais no fundo encontramos o bom e velho mito do chauvinismo masculino sobre como as mulheres são criaturas indefesas que deveriam ser protegidas não apenas de homens impertinentes, mas, em última instância, também delas mesmas. O problema não é que sejam incapazes de proteger a si mesmas, mas que possam começar a gostar de ser sexualmente assediadas – que o assédio masculino libere nelas uma explosão autodestrutiva de excessivo prazer sexual... Em suma, o que deveríamos enfocar é que tipo de noção de subjetividade está implicada na obsessão com diferentes formas de assédio? Não é a subjetividade “narcisista” em que tudo o que os outros fazem (fale comigo, olhe para mim...) é potencialmente uma ameaça, de forma que - como disse Sartre há muito tempo – l’enfer, c’est les autres?”
Às Portas da Revolução – escritos de Lênin de 1917 – de Slavoj Zizek
(texto que postei exatamente há um ano atrás)
Gostaria muito de poder escrever “camaradas mulheres, negai a tirania falocêntrica sob a qual estão submetidas, erguei vossa bandeira e lutem por serem o que são num mundo onde são excluídas e chamadas de fracas e inferiores”, mas infelizmente o mundo se complicou demais para que um grito de luta tão velho desse conta da coisa. Essa busca heróica pela realização da mulher livre e independente criou um monstro. Mas como toda criatura, seus desdobramentos internos fazem-nos compreender melhor o que se poderia chamar de “Criador”. A busca pela verdade feminina, que sobrepujaria as calcinhas rosas de rendas com lantejoulas reluzentes e as saias menores que 40 cm, demonstrando que a realização de uma determinada feição identitária da mulher é apenas um semblante resignado que atende à brutalidade fálica das exigências sensuais masculinas, não mais corresponde à radicalidade que o engajamento feminista necessita. A satisfação espiritual das mulheres é atendida pelas linhas de produção, onde a cultura não é simplesmente reduzida a uma mercadoria, mas a própria mercadoria é culturalizada. Esse real tornado semblante, essa profundidade feminina tornada uma identidade efetivada no existente, nos arrasta para a mais cruel e intragável das conclusões: "A mulher não existe". A identidade feminina tornou-se mais um rosto de areia apagado pelas ondas de mais uma praia do fim da História. A identificação da mulher como tal atende a um imperativo de reprodução, tal qual qualquer outra subjetividade composta em uma racionalidade social mediada por uma ordem irracional efetiva. Se a verdade feminina, contudo, nasce com sangue e dor, ela não pode ser negada com simples indexações epistemológicas perfeitamente determinadas. A mulher se torna consciente sem os artifícios narcísicos masculinos, assumindo o olhar narrativo sem que a objetividade fálica se realize. Essa efetividade de uma consciência sem a base que a determinaria é a prova mais visível, talvez, que a constituição falocêntrica masculina é tão falsa quanto aquela que tentava inferiorizar pela ausência de seus pressupostos positivos. O “ser mulher” guarda dentro de si o irracionalismo da subjetividade alocada em qualquer identidade. Eis que surge a radicalidade de vossa condição existencial: Tudo aquilo que faz com que vocês pensem, sintam, desejem como o que entendem sob a idéia de que são mulheres, é aquilo que reproduz uma dupla relação opressiva – por um lado atendem perfeitamente a uma subjetividade que precisa ser exteriorizada em toda sua profundidade e intimidade relacionada a uma falsa universalidade, onde todos são politicamente corretos e, portanto, pró-femininos, mas ao mesmo tempo atende aos imperativos necessários para que se encaixem no sistema de produção, na divisão do trabalho, no ordenamento da exploração. Esse vazio violentamente imposto a vocês, que vêem o próprio sangue todo mês, que têm sensações, idéias e paixões reduzidas a uma falsa interioridade, mas que assustadoramente se torna efetiva (pois são mulheres!! - ou seja, é um vazio que preenche), são vocês que sentem de forma mais clara o ponto nevrálgico onde o horizonte depressivo e acomodado encontra a justificativa de uma revolta. Revolta que se desdobra para todos os outros, que também são meras formas opacas com falsos conteúdos. E é neste sentido que apóio a vossa luta, eu, que sou tudo aquilo que vocês devem negar, que tenho como pressuposto da minha forma de interagir com o real a contribuição para o vosso abuso, opressão, humilhação, que sou, quer eu queira ou não, vosso inimigo, desejo com toda sinceridade vossa vitória, assim como um suicida dispara uma arma contra o próprio crânio desejando que milagrosamente sobreviva, assim como alguns perdidos de gerações anteriores conseguiam desejar o impossível. Acho que é só. Beijos. Boa semana a todos.
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